viernes, 17 de septiembre de 2010

Águas de março

Texto de Raquel de Queiroz
Última Hora
20/03/73
Tom Jobim escreveu e compôs o poema musical das Águas de Março, coisa bela e estranha, dura; fere o coração com um toque de pedra e depois o afoga na cheia das águas. Promete e recorda, memória de infância e angústias da força do homem. E até num velho pode suscitar nostalgias antigas.
Águas de Março; não sei se o sabia, Tom, são também para muita gente a última esperança. Equinócio de verão, dia de S. José, a derradeira oportunidade do inverno. Vinte e um de março - a virada do verão, o equinócio. Mas o povo antes se fia no 19 de março, dia de S. José, o carpinteiro, que foi gente como nós e sabe o que é pobreza e insegurança.
Sim, Tom, tem lugares no mundo onde é a última oportunidade. Se não chover até ali, não chove mais; daí para diante, será por toda parte só o vento, o sol, a terra cizenta, a fome - se a gente quisesse repetir a batida de eco da sua enumeração poética.
Este ano vem sendo o quinto em que não chove ou chove mal em muitas zonas do Nordeste. Salteado chove, aqui e ali, mas nunca regularmente e geral, nunca total e seguido nos meses certos, como devia ser. Se em 60 foi bom aqui, em 70 foi péssimo, nos outros foi fraquinho. E nos Inhamuns, por exemplo, foi ruim emendado, o tempo todo. A mesma história se conta nas margens do S. Francisco, no sertão inteiro de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará. E esses anos magros de estiagem, juntando-os todos, vêm a ser pior do que uma seca completa e corrida, de dezembro a dezembro. Pois a seca vindo de repente, embora total, encontra as reservas dos anos bons, açudes cheios, gado sadio, algum resto de legume e farinha nos paióis. E o povo resiste bem, sabendo que é só aquele ano; trinca os dentes e agüenta - afinal é uma penitência.
Mas depois que apareceu a seca verde, é diferente e pior. Chove um pouco em janeiro ou fevereiro. Nasce a rama, a terra se enfeita, os jornais dão notícia. O povo planta. E aí recomeça o verão. Com o verão, vem a largata, come toda folha nova. Então o povo replanta. Em alguns lugares o legume nasce, em outros nem chega a nascer, porque o inverno parou. Só uns barrufos de chuva, de longe em longe, que não dão para umedecer o chão de novo estorricado e só servem para desmentir quem fala em seca.
Com os anos seguidos de inverno escasso, os açudes baixaram, cada falso inverno perdendo mais do que recuperando. Afinal veio 72, e tudo secou de vez. O leito da água evaporada ficou no barro, lascou, empedrou. O peixe, que era um dos recursos do povo, morreu todo. Reserva de nada não há mais nenhuma. Até a água dos grandes açudes do governo fica grossa, baldeada. O gado é uma ameaça, descarnado e triste.
E o povo, que vai ser dele? Voltar à amargura, ao vexame das frentes de serviço, trabalhos de caridade que as máquinas fariam muito melhor? Só Deus sabe - Deus e S. José no seu dia, 19 de março. O qual, quando estas linhas sairem à rua, já se terá passado - e então se saberá definitivo se é hora de sorrir ou de chorar.

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